sábado, 26 de maio de 2007

2º andar, direito

"Ele vinte anos, e ela dezoito
e há cinco dias sem trocarem palavra
lembrando as zangas que um só beijo curava
e esta história começa no instante
em que o homem empurra a porta pesada
e entra no quarto onde a mulher está deitada
a dormir de um sono ligeiro

E no quarto, às cegas,
o escuro abraça-o como a um companheiro
que se conhece pelo tocar e pelo cheiro
e é o ruído que o chão faz que lhe traz
o gosto ao quarto depois de uma rupturaf
faz-lhe sentir que entre os dois algo ainda dura
dos dias em que um beijo bastava

E agora, da cama
vem uma voz que diz sussurando: És tu?
e a luz acende-se sobre o braço nu
e a mulher pergunta: A que vens agora?
é que não sei se reparaste na hora
deixa dormir quem quer dormir, vai-te embora
amanhã tenho de ir trabalhar

Não fales, que o bebé ainda acorda
não grites, que o vizinho ainda acorda
e não me olhes que o amor ainda acorda
deixa-o dormir, o nosso amor, um bocadinho mais
deixa-o dormir, que viveu dias tão brutais

E o homem de pé
parece um rapazinho a ver se compreende
e grita e diz que ele também não se vende
que quer a paz mas de outra maneira
e nem que essa noite fosse a derradeira
veio afirmar quer ela queira ou não queira
que os dois ainda têm muito a aprender

Se temos...! diz ela
mas o problema não é só aprender
é saber a partir daí que fazer
e o homem diz: Que queres que responda?
Não estamos no mesmo comprimento de onda...
Tu a mandares-me esse sorriso à Gioconda
e eu com ar de filme americano

Somos tão novos, diz o homem
e agora é a vez de a mulher se impancientar
essa frase já começa a tresandar
é que não é só uma questão de idade
o Amor não é bilhete de identidade
é eu e tu, seja quem for, ter vontade
de mudar e deixar mudar

Não fales, que o bebé ainda acorda
não grites, que o vizinho ainda acorda
e não me olhes que o amor ainda acorda
deixa-o dormir, o nosso amor, um bocadinho mais
deixa-o dormir, que viveu dias tão brutais

E assim se ouviu
pela noite fora os dois amantes falar
e o que não vi só tive que imaginar
é preciso explicar que sou eu o vizinho
e à noite vivo neste quarto sozinho
corpo cansado e cabeça em desalinho
e o prédio inteiro nos meus ouvidos

Veio a manhã e diziam
telefona ao teu patrão, diz que hoje não vais
que viveste uns dias assim tão brutais
e que precisas de convalescença
sei lá, inventa qualquer coisa, uma doença
mete um atestado ou pede licença
sem prazo nem vencimento, se preciso for
(Espero que não seja preciso, porque não
sei como é que eles vão viver sem os dois
salários...)

Vá fala, que o bebé está acordado
o vizinho deve estar já acordado
e o Amor, pronto, também está acordado
mas tem cuidado, trata-o bem
muito bem, de mansinho
que ainda agora vai pisar outro caminho"

Uma capacidade inesgotável de brincar com as palavras, de contar histórias de forma inimitável com os pés na realidade!
O único, igual a si mesmo, fiel aos seus ideiais:
Sérgio Godinho!!:)

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